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Flávia Esper

Minha avó não fazia compras de mês


Minha avó era uma pessoa única. Todos somos, é verdade, mas ela tinha umas peculiaridades bem marcantes, a começar pela voz, pela gargalhada, por ser conhecida por todos ao passar na rua, mesmo que ela não conhecesse quase ninguém. Sua força já vinha no nome: Gioconda. E, se ela reclamava que nunca conhecera alguém de mesmo nome, para mim, isso combinava perfeito com como ela era única e especial.


Há muitas histórias sobre a minha avó, desde antes de ela nascer, passando por sua vida profissional em uma época em que mulheres não deveriam ser profissionais e fortes, chegando à vida de dona-de-casa, mãe, avó e bisavó. Um dia ainda conto essas histórias. Hoje quero falar de mercado.


Dona Gioconda morava em uma casa grande, com uma despensa enorme e sempre tinha estoque de coisas que lhe faziam falta na hora de preparar sua torta de cebola, seus doces de abacaxi, sua carne assada com açúcar. Mas sempre faltava algum ingrediente. Havia dois mercados próximos, além da feira. Segundo ela, cada um era melhor para um certo tipo de coisas. E ela sabia os preços de cada item e de cada um.


E todo dia, lá ia ela, aquariana que só, com sua bolsa de pano dobrável, para não usar sacolas de plástico. Ia a um dos mercados, comprava uma lata de alguma coisa. Por vezes, ia também ao outro, comprar um tablete de margarina ou uma caixa de um creme qualquer. Em outras, voltava para casa e deixava para ir ao outro mais tarde ou no dia seguinte.


Uma vez, eu perguntei por que ela não comprava logo tudo de uma vez. Era uma das semanas em que eu fugia para a casa dela nas férias. Ela havia comprado uma lata de milho e deixou para comprar uma caixa de leite no dia seguinte, no mesmo mercado da outra esquina. Perguntei por que ela não aproveitava que eu estava lá para ajudar a carregar as compras e não comprava tudo de uma vez. Nem era tanta coisa assim.


Na minha inocência, achava que ela não comprava tudo porque não aguentava carregar. Cheguei mesmo a dizer que o mercado fazia entregas, para o caso de ela precisar quando eu não estivesse lá. Ah, a arrogância carinhosa dos jovens, que pensam que sabem mais e que têm solução para tudo, sem saber que o que tentam solucionar não era problema, já era mesmo a solução dos sábios.


Foi então que ela me explicou que era preciso sempre ter de ir ao mercado ou à feira ou a qualquer lugar, senão a pessoa se esquece de sair de casa. Assim, obriga-se a ir à rua, a ver pessoas, a ver o sol. Sair de casa faz bem.


Era uma das inúmeras formas que Dona Gioconda encontrava de se manter ativa, de manter sua rotina tão bem naturalmente organizada e de sempre fazer sua higiene mental, caminhando pelas ruas, dando sorrisos a quem a cumprimentava, fingindo lembrar das pessoas, sentindo-se vista e querida. Na maior parte das vezes em que eu lhe perguntava quem era aquela senhora ou senhor que a cumprimentara, dizia baixinho “não sei, por aqui todo mundo me conhece” e ria uma risada marota de disfarce, porque ela não conhecia quase ninguém.


E eu, que fazia tudo para não precisar sair de casa, toda vez que peço compras de mês ou que fico alguns dias sem sair, me lembro da Dona Gioconda, que chegou aos 95, com sua rotina de acordar cedo, resolver as coisas de manhã, almoçar e depois sentar-se na poltrona para ler o jornal e tirar o cochilo da tarde. Quando mudei-me para o apartamento onde moro hoje, havia um mercadinho na esquina e eu fazia questão de imitá-la. Agora o mercadinho fechou e é um exercício manter essa rotina de sair diariamente.


Há muitos anos, li uma frase, eu nem me lembro de quem, que dizia mais ou menos assim: “todos os dias, leve seu cachorro para passear, mesmo que você não tenha um cachorro.” Minha avó levava o dela pro mercado. E você, por onde passeia diariamente com o seu cachorro?

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